Gov.br: o que o “governo” quer saber mais sobre você?

Em breve, quando você acessar os serviços prestados pelo governo ao cidadão no portal “Gov.br”, através de um login único, você irá se deparar (se já não estiver acontecendo) com essa mensagem:

E aí você terá de resolver um dilema: autoriza ou não o governo a usar os seus dados, que serão coletados por uma empresa privada de nome “Lecom Tecnologia S/A“, que gerencia esse portal e em sua página tem o sugestivo slogan, “acelere a transformação digital do seu negócio”.

Essa empresa, que segundo informações tem sede em Bauru (SP) tem capital social de R$ 50 mil e um contrato com o extinto Ministério do Planejamento de R$ 6 milhões. Que foi herdado pelo Ministério da Economia através da Secretaria Especial de Governo Digital, cujos mesmos técnicos são remanescentes da antiga pasta.

Convém lembrar que os seus dados já estão com o governo desde que você se tornou gente. O que você irá fazer neste caso é dar uma autorização de “uso” e uma atualizada neles. Por exemplo, aquela velha foto será atualizada por uma mais recente, te identificando e te validando na rede.

Não está em discussão aqui sobre o benefício de um “login único”, criado para estabelecer uma relação de confiança entre os usuários e os serviços públicos ou sistemas integrados, conforme definição dada nos Termos de Uso. E isso é fato. Ele foi concebido para proteger e validar suas informações pessoais e simplificar o acesso aos serviços públicos por meio de uma só senha.

Que ótimo! A ideia em si é genial. Só não entendo por que os gênios que a conceberam – que são os mesmos há anos no Serviço Público Federal – não tiveram essa ideia antes?

Mas a utilização dos seus dados vai muito além do que atualizar suas rugas no rosto. De acordo com o item 1.10. dos Termos de Uso que definem as regras para o uso desses dados, o governo terá a possibilidade de promover as seguintes ações:

“Comunicação, difusão, transferência internacional (?), interconexão de dados pessoais ou tratamento compartilhado de bancos de dados pessoais por órgãos e entidades públicos no cumprimento de suas competências legais, ou entre esses e entes privados (?), reciprocamente, com autorização específica, para uma ou mais modalidades de tratamento permitidas por esses entes públicos, ou entre entes privados.

Indago: 1 – Por que o governo brasileiro teria intenção de transferir os meus dados para o exterior, sabe-se lá para quem?

2 – Ao autorizar o uso dos meus dados pelo governo, também estou autorizando o governo a ceder os meus dados para entes privados?

3 – Que “tratamento” será dado aos meus dados pelo governo e os entes privados?

Para justificar essas ações, o governo alega que fará tudo dentro do que está previsto em decretos e legislação pertinente:

  • Decreto de Governança Digital-DECRETO Nº 8.638 DE 15, DE JANEIRO DE 2016;
  • Decreto da Plataforma da Cidadania Digital – DECRETO Nº 8.936, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2016;
  • Decreto de Compartilhamento de Bases de Dados-DECRETO Nº 8.789, DE 29 DE JUNHO DE 2016;
  • Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural;
  • Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural;
  • Normas complementares do Gabinete de Segurança da Informação da Presidência (GSI/PR);
  • Marco civil da internet – LEI Nº 12.965, DE 23 DE ABRIL DE 2014.

Quem aqui, que não seja advogado, conhece profundamente todo esse arcabouço legal, que possa lhe garantir a segurança necessária para autorizar o repasse dos seus dados pessoais? Não estaremos repetindo a boa e velha mania de consentir, sem ler ou ter maiores informações, o uso dos nossos dados para garantir o acesso ao serviço de um aplicativo, como já é feito nas lojas do Google ou da Apple?

Há ainda uma dúvida da minha parte, pois não testei a solução, mas também não vi o governo se manifestando sobre isso. Não está claro o que iria acontecer, caso você negue o “uso” dos seus dados pelo governo. Não há indicativos se o serviço que você busca seria mantido assim mesmo ou negado.

E aí entramos numa discussão complicada, sem elementos mais concretos para avaliar a questão: pode o governo se negar a dar acesso a um determinado aplicativo de serviços prestados por ele mas, em tese, pagos pelo seus impostos, caso você, embora “logado” na rede do governo, validado o seu perfil, negue o uso dos seus dados pessoais?

Nos Termos de Uso sobre privacidade de Pessoas Físicas que o portal apresenta, não está clara essa questão.

Assim como há controvérsias o fato de o governo ter colocado nos Termos de Uso a informação de que “a Administração Pública, em se tratando do Login Único Gov.br, não comercializa em qualquer hipótese, dados ou informações dos usuários com terceiros, respeitados os limites e diretrizes da Lei 13.709”.

Duvido muito que o governo negocie, caso a caso, os dados de cada cidadão brasileiro com empresas privadas. Entretanto, o que pensar de uma eventual negociação em bloco desses dados, quando o governo realmente privatizar todos esses bancos de dados que estão hoje sob controle de empresas estatais?

Afinal de contas, vendeu ou não vendeu esses bancos de dados ao proceder a privatização?

*Com a palavra os “transformadores digitais” deste governo.