O Custo Brasil no 5G

*Thiago Camargo, Advogado e mestre em administração pública pela Universidade Columbia, que foi secretário de Políticas Digitais do MCTIC na gestão Gilberto Kassab, além de membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil, escreveu um artigo cujo título é: “Rede privativa do governo e criação de infraestrutura do zero vão atrasar e aumentar custo da tecnologia”. O artigo questiona o que ele considera “decisões equivocadas” da Anatel no Edital do Leilão do 5G, que poderão atrasar a implantação da tecnologia no Brasil, além de torná-la cara para o usuário final e inibir novos entrantes no mercado brasileiro. Leiam*.

“O Brasil nunca perde uma oportunidade de perder oportunidades”, disse certa vez Roberto Campos, grande referência do pensamento liberal brasileiro, ao referir-se à intervenção estatal de forma a atrapalhar o desenvolvimento econômico —ainda que com a melhor das intenções.

Quando a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) aprovou o edital para o leilão do 5G brasileiro, fiquei com essa sensação de não perdermos a oportunidade de perder uma oportunidade.

Até o ano passado, o grande desafio para destravar o leilão era a decisão pendente sobre o que fazer com os usuários de parabólica. A decisão do regulador foi a mais cara e demorada: manter os usuários de parabólica presos ao passado. Alguns bilhões de reais serão gastos para garantir que eles continuem presos à necessidade de uma antena para receber o mesmo conteúdo que poderiam receber, com maior qualidade e interatividade, pela internet.

Além de ter atrasado no passado, essa decisão vai atrasar no futuro, pois o edital não permite a operação do 5G imediatamente nos grandes centros urbanos, onde a instalação de uma nova antena não causaria interferência com nenhuma parabólica. Será necessário esperar o cronograma de migração dos serviços e distribuição de kits para, só depois, operar o 5G, mesmo onde não há grande uso de antenas parabólicas.

Como se esse atraso e gasto extra não fossem suficientes, ainda houve a decisão de criar outros entraves.

O leilão do 5G era esperado como um leilão de caráter não arrecadatório, erro acontecido no leilão do 4G, e focaria mais a obrigação de instalação de infraestrutura e universalização de acesso. O problema é que foram criados tantos penduricalhos de caráter obrigatório que o custo das obrigações acessórias pode ficar tão caro quanto o custo do direito de explorar as faixas do 5G.

Quem ganhar um dos grandes blocos nacionais terá que, além de arcar com o custo de migração de banda satelital para proteger os usuários de parabólica, implementar fibra ótica prevista no Programa Amazônia Integrada e Sustentável, criar uma rede privativa para uso do governo e implantar toda uma nova infraestrutura para o 5G, já que o edital cobra um padrão de 5G (chamado “stand-alone”) que não pode fazer uso da infraestrutura já instalada pelas empresas de telecomunicações.

Tudo isso torna a implantação mais cara e demorada, e, como dinheiro não é infinito, é provável que alguma coisa dê errado pelo caminho. Além de arcar com todas essas obrigações, as empresas que ganharem ainda terão que pagar pelo direito de exploração das faixas e investir mais dinheiro para implantar as redes de fato.

Isso tudo em um momento em que Tim, Vivo e Claro (as prováveis vencedoras de blocos) negociam para comprar a rede móvel da Oi, empresa que está em recuperação judicial —o que, além do preço de aquisição, pode também acarretar obrigações extras após uma análise do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Como as obrigações do leilão não são, naturalmente, opcionais, pode ser que falte dinheiro para a compra da Oi, e isso vai causar danos a muitos usuários de telefonia móvel no Brasil.

Além da falta de dinheiro, há, ainda, dois pontos muito problemáticos para a implantação rápida do 5G, que merecem muita atenção do TCU (Tribunal de Contas da União): a rede privativa da União e o padrão “stand-alone”.

Essas obrigações parecem ferir seriamente o princípio da eficiência, um dos norteadores da administração pública, além de apresentar certo desencontro com a Lei Geral de Telecomunicações, que não prevê a associação de autorização de uso de radiofrequência ao cumprimento de políticas públicas e programas elaborados pelo governo.

A rede privativa da União, cobrada a quem vencer o leilão, prevê a criação de redes fixas e móveis para atender exclusivamente aos órgãos de governo e serviços de segurança e urgência. A medida é desnecessária, já que esses órgãos são plenamente atendidos pelas redes atualmente existentes.

A medida é exagerada, já que, além das redes existentes, os serviços de defesa já contam com faixas privativas de frequência, e o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas tem uma banda exclusiva (a banda X) para tramitação exclusiva de informações relativas a defesa e governo, além de fornecer internet para milhares de escolas e postos de saúde.

A medida é potencialmente ilegal, pois fere os princípios da razoabilidade e do interesse público, já que gerenciar rede de comunicação não é uma atividade da administração pública desde que se fez a privatização do sistema Telebras e o governo vai gastar mais dinheiro do contribuinte para fazer a manutenção e gestão da rede.

A medida é inócua, pois, se o que se busca é uma ação extrema de cibersegurança, de nada vai adiantar, porque não importa quem forneça a infraestrutura, as pessoas no governo vão continuar conectando os seus aparelhos Android, iOS e Windows, rodando inúmeras aplicações capazes de coletar e transmitir dados sem qualquer possibilidade de controle governamental.

Acima de tudo, a medida é politicamente conflitante com o discurso de um governo que promete privatizações, coloca a Telebras na lista de órgãos a serem privatizados e agora pede uma rede privativa de comunicações que, naturalmente, será administrada pela estatal que estava para ser privatizada. Nada liberal, certo? Pobre Roberto Campos, o avô.

Pra ser bem claro: a rede privativa é uma manobra política para impedir que fabricantes chineses forneçam equipamentos para a infraestrutura sobre a qual as comunicações governamentais trafegarão. Surge aí um outro problema dessa medida, pois ela tem dificuldades até para atender esse objetivo.

A maneira encontrada pelo governo e pelo regulador de excluir empresas chinesas, a Huawei em especial, de fornecer infraestrutura foi dizer que só poderão ser “utilizados equipamentos projetados, desenvolvidos, fabricados ou fornecidos por empresas que observem padrões de governança corporativa compatíveis com os exigidos no mercado acionário brasileiro”.

O problema é que o mercado acionário é regulado e não regulador e ele não define padrões de governança. A B3, a única Bolsa de Valores realmente operacional no Brasil, tem padrões de governança para listagem das empresas em diferentes segmentos —são 5 segmentos. A Lei das S.A e as leis 4.728/1965 e 6.385/1976, que regulam o mercado acionário, nem sequer possuem a palavra governança em seu corpo. O que o governo queria, me parece, dizer com esse trecho era “as empresas precisam estar listadas em Bolsa”, mas nenhuma das grandes fornecedoras de infraestrutura para 5G estão listadas na B3.

Além da surpreendente necessidade do governo de uma rede de comunicações para chamar de sua, o TCU também deve ficar de olho na obrigatoriedade do padrão “stand-alone”, já que isso fere o princípio da eficiência.

O leilão é para autorizar empresas a explorarem faixas de radiofrequência. Essas faixas, assim como o espaço aéreo, pertencem à coletividade e, para usar uma propriedade que é de todos nós, as empresas pagam à coletividade um determinado preço.

Quando a administração pública, representando a coletividade, vende o direito de explorar uma propriedade, ela precisa ficar atenta a todos os princípios que norteiam a administração pública, incluindo o da eficiência, que obriga a administração pública a atingir o melhor resultado possível com os recursos disponíveis.

O resultado esperado do leilão 5G é, obviamente, que a maior parte da população tenha acesso a essa tecnologia. Os recursos disponíveis são a infraestrutura que já temos instalada e que pode ser utilizada para implantar uma rede mais rápida. Ao determinar a obrigação de instalação de uma infraestrutura toda nova, o governo alega que isso traria a melhor tecnologia disponível e permitiria novos entrantes. Essa é uma determinação falha.

Fábio Faria, ministro das Comunicações, declarou em 17 de março que apenas Claro, Vivo e TIM participariam do leilão. Não haverá novos entrantes —o que é natural, já que fica caro pagar todas essas obrigações e investir em infraestrutura. Os novos entrantes devem ficar nos blocos regionais, onde não terão que arcar com as mesmas obrigações bilionárias e poderão tocar seus negócios com menor investimento.

Ainda que houvesse novos entrantes, a obrigatoriedade de infraestrutura nova tentou aumentar a concorrência aumentando o custo para todo o mundo, o que é ilógico. Como se não bastasse isso, a demora no início da operação não apresenta benefício claro.

A única diferença relevante entre o 5G puro e o 5G que já poderia ser imediatamente implantado é o “network slicing”, que serve, principalmente, para diminuir drasticamente a latência nas comunicações. Essa baixíssima latência é importante para carros autônomos e cirurgias pela internet, coisas que estão muito distantes de acontecer no Brasil devido a regulações que vão além do acesso à tecnologia.

Poderíamos, portanto, já começar a implantar o 5G imediatamente, utilizando a infraestrutura existente e, à medida que a rede fosse sendo expandida, instalar nova infraestrutura e fazer o upgrade dos equipamentos. O custo de oportunidade ao decidir por uma infraestrutura mais cara e que vai atrasar é altíssimo para a economia brasileira.

E, assim, o que era observação, vai virando profecia, e vamos cumprindo o nosso destino de não perder uma oportunidade de perder oportunidades.

*Transcrito da Folha de São Paulo