Bens Reversíveis de Telecom depois de 22 anos das privatizações?

*Flávia Lefèvre Guimarães – Ontem a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) noticiou como um grande feito que entregou ao Tribunal de Contas da União (TCU) a lista dos bens reversíveis associados aos contratos de concessão da telefonia fixa, celebrados ainda em junho de 1998. A entrega foi feita a fórceps, pois desde 2006 o TCU vem cobrando da ANATEL o controle dos bens reversíveis.

Para que se possa ter uma noção do grau do descontrole pela ANATEL, a despeito de a privatização e os respectivos contratos de concessão terem sido celebrados em 1998, até 2007, nunca tinha havido ações de controle pela agência sobre os bens reversíveis. Tanto é assim, que o regulamento para controle sobre os bens reversíveis só veio com a Resolução 447, de dezembro de 2006; e essa norma só passou a surtir efeitos de fiscalização a partir de 2007, por imposição do TCU.

Em 2015, como já contei aqui no blog, o TCU, por meio do Acórdão 3311/2015, determinou que a ANATEL adotasse uma série de medidas para o controle dos bens reversíveis. A agência recorreu daquela decisão e, em outubro de 2019, o TCU proferiu o Acórdão 2142/2019 reiterando as dezenas de medidas impostas em 2015, estabelecendo um prazo para que a ANATEL apresentasse a lista dos bens reversíveis.

Então, só agora, apesar das iniciativas do TCU e da determinação da Justiça em Ação Civil Pública movida pela PROTESTE – Associação de Defesa do Consumidor, será possível, espero, termos a lista dos bens reversíveis.

Mas afinal, o que são esses bens?

Estamos falando de quase 10 mil imóveis, de milhares de antenas, quilômetros e quilômetros de backbone e seus respectivos dutos por onde passam as redes por todo o Brasil, backhaul, redes de acesso, contratos, entre outros bens e equipamentos de propriedade da OI, Vivo, Claro, Sercontel e Algar Telecom, que são as concessionárias de telefonia fixa.

Segundo o TCU, estamos falando de um patrimônio de mais de R$ 121 bilhões, mas a ANATEL nega e tem dito por aí que não vale mais do que R$ 20 bilhões.

O representante da ANATEL, na matéria do Telesíntese que noticia a entrega da lista dos bens reversíveis ao TCU afirmou o seguinte:

“A gente nunca teve um conjunto de informações tão apurado sobre a questão dos bens reversíveis”, afirmou ao Tele.Síntese o superintendente de Controle de Obrigações da Agência Nacional de Telecomunicações, Carlos Baigorri. Ele destacou que não se verificou nenhuma dilapidação do patrimônio, mas sim aumento dos ativos.

Primeiro, festejamos que a ANATEL, depois de 22 anos de privatização, tenha envidado esforços de ir ao Arquivo Nacional, como temos orientado há anos, para levantar a lista dos bens, como foi determinado pela Justiça Federal. Até nós da sociedades civil já temos a lista de todos os imóveis.

Porém é estranha a afirmação de que não houve dilapidação de patrimônio, pois está em contradição com a Auditoria de Fiscalização – Relatório no 011120071AUD de dezembro de 2007 realizada pela própria ANATEL, cujas conclusões foram as seguintes:

Por que é importante garantirmos o valor dos bens reversíveis?

De acordo com as novas regras que regulam as concessões da telefonia fixa, aprovadas pela Lei 13.879/2019, as empresas poderão adaptar os contratos de concessão para contratos de autorização e o valor dos bens reversíveis serão utilizados para definir compromissos a serem assumidos pelas teles para novos investimentos em infraestrutura de banda larga para ampliar o acesso a Internet.

Ou seja, se o valor dos bens for sub-avaliado, teremos, além da perda em si de um vultoso patrimônio público, menos investimentos para atender a demanda por infraestrutura de acesso a Internet, que tem nos levado a esse enorme fosso digital, que se revela de forma muito clara agora com o cenário de isolamento social decorrente da Covid-19.

Matéria da Folha de São Paulo publicada ontem assinada pela Paula Soprana mostra dados lamentáveis de redução dos acessos a Internet.

A Ação Civil Pública movida pelas entidades da Coalizão Direitos na Rede

É por essas e outras razões que o Intervozes, IDEC, Clube de Engenharia, Instituto Bem Estar Brasil, Coletivo Digital, Garoa Hacker Clube e o COMPAS, ajuizaram no último dia 6 de agosto Ação Civil Pública para evitar uma perda enorme de recursos públicos – além dos bens reversíveis os termos de autorização para uso de radiofrequências, o que poderá acontecer, caso a metodologia de cálculo desse patrimônio se dê nos termos propostos pela ANATEL e pelo Decreto 10.402, editado no último dia 17 de junho deste ano.

Lutamos de forma incansável e pela universalização da banda larga e, portanto, contra o PLC 79, do qual se originou a Lei 13.879/2019, pelas razões tantas vezes apresentadas aqui e em audiências públicas na Câmara e no Senado, mas agora que o novo modelo foi aprovado, é necessário que a transição se dê de acordo com as garantias constitucionais relativas aos contratos administrativos e o interesse público.

É preciso que essa transição, questionada pelas entidades da sociedade civil há anos, como tenho noticiado aqui no blog, se dê com controle social e de acordo com a devida supervisão do TCU e da Justiça, de modo que esse importante patrimônio público reverta em democratização das comunicações.

*Flávia Lefèvre Guimarães é Advogada e Mestre em Processo Civil pela PUC/SP.