A democratização do lobby e as fake policies

*Por Renard AronA pandemia deu um pause nas conversas nos gabinetes de deputados e ministros, e nos bate papos nos corredores do Congresso, entre um cafezinho e outro. No ínterim, vem ganhando corpo o lobby mais aberto, inclusivo e digital, que como do nada pode chegar com a força de um tsunami. A live da Anitta em maio com o Deputado Felipe Carreras (PSB-PE) para discutir a emenda que ele havia apresentado sobre direitos autorais não deixa dúvida. Não demorou um dia para que o Deputado voltasse atrás, pedindo para que a sua emenda fosse retirada, conforme pleito da cantora.

A ação da Anitta foi absolutamente transparente, para todo mundo ver, uma verdadeira quebra de paradigma. Mas a vertente digital do lobby tem seu lado B. Da mesma forma que as eleições e o debate político online estão sujeitos às fake news, o debate online em torno das políticas públicas está sujeito às fake policies. É quando memes, tweets, posts, vídeos e até estudos circulam pela internet com desinformações ou falsidades com o objetivo de moldar a opinião pública a favor ou contra uma proposta de política pública. É o que tem ocorrido com a disseminação de informações que minimizam a pandemia, favorecem a reabertura a qualquer custo da economia e desmerecem a ciência. O resultado são inúmeras mortes que poderiam ter sido evitadas.

A complexidade inerente a uma política pública bate de frente com a velocidade do debate no mundo online, onde a conversa pode ser rasa e aberta a manipulação, com mensagens que conectam com os nossos valores e que procuram estimular uma reação emotiva, como mostra o triste episódio de 2016 em que o Congresso Brasileiro aprovou a fosfoetanolamina. O medicamento estava sendo utilizado para o tratamento do câncer sem que sua eficácia e segurança tivessem sido comprovadas pela Agência competente, a Anvisa. A emoção tomou conta da conversa e o Congresso aprovou o projeto de lei (e o medicamento) em tempo recorde — quatro semanas — sucumbindo a pressão popular. Não havia espaço para o dissenso científico (um prelúdio ao debate em torno de alguns tratamentos para o coronavírus) nem para argumentos de que o Congresso estava violando a regulamentação vigente no país, mostrando, já em 2016, o perigo do efeito manada. Coube ao Supremo Tribunal Federal corrigir a situação.

Infelizmente, as redes sociais favorecem comportamentos do tipo “Maria vai com as outras” (gostamos daquilo que outros já gostaram), fazendo com que ideias possam rapidamente tornar-se virais, criando uma massa crítica de pessoas a favor ou contra uma proposta. Esta onda de apoio (o tsunami) passa a ideia de inevitabilidade e de apoio maciço da sociedade. Mesmo que as plataformas sociais estejam adotado medidas para coibir a propagação de mensagens nocivas, ainda caberá ao poder público avaliar se a onda é resultado da manipulação da sociedade através da disseminação de fake policies com o apoio de bots e trolls, ou se por trás da manifestação existe proposta sólida de política pública defendida por segmentos da sociedade.

O lobby digital viabilizou a entrada em cena de novos atores (como a Anitta e outras celebridades), empoderou o cidadão stakeholder que agora tem voz coletiva e criou formas inovadoras de fazer lobby (via o YouTube, o Instagram e a AVAAZ), democratizando o processo. Por outro lado, as fake policies tendem a se tornar cada vez mais onipresentes. Neste sentido, as lives da Anitta com a Gabriela Prioli explicando o feijão com arroz da política e do mundo das políticas públicas são extremamente louváveis.

Renard Aron é consultor, autor do livo “Lobby Digital – Como o cidadão conectado influencia as decisões de governos e empresas” e palestrante. Tem mais de 25 anos de experiência profissional em relações com governo, cidadania corporativa e public affairs no Brasil e nos EUA, tendo trabalhado para grandes multinacionais e entidades de classe. É fundador da PolicyZone, consultoria que ajuda organizações a se prepararem para um ambiente de discussão de políticas públicas mais aberto, participativo e digital. Até março de 2018, foi VP da área de relações com governo e policy para a América Latina da Johnson & Johnson.